Resenha do livro “Como Deus age no mundo”

A onipotência de Deus face a autonomia da natureza na atualidade

Por Silvana Coelho – 04/06/2024

Questões como religião e ciência estão sempre em discussão tanto nos meios acadêmicos quanto fora deles, levando-nos a pensar que uma área se opõe à outra ou ainda que uma está mais correta do que a outra. Entretanto, podemos observar que houve grandes mudanças nos últimos anos que fizeram com que tanto a ciência quanto a religião pudessem se complementar de maneira que é possível ver tanto o agir de Deus quanto o fluir dos eventos naturais.

No livro Como Deus age no mundoO Debate sobre a providência divina e as leis naturais, lançado em 2023 pela editora Thomas Nelson Brasil, o filósofo e teólogo argentino Ignácio Silva faz uma análise acerca de diversos pensadores, porém, ele procura se aprofundar nos textos deixados por Tomás de Aquino, os quais tratam da relação entre a providência divina e as causas naturais presentes na natureza.

A Providência Divina na Atualidade

Diante do fato de que muitos negam a possibilidade da ação providencial divina frente aos eventos naturais, Ignácio Silva caminha no sentido contrário, ou seja, procura fazer uma análise dos eventos naturais que levem a um entendimento da ação divina sobre eles. No prefácio de sua obra, o autor destaca dois fatores importantes que norteiam o debate sobre a providência divina na atualidade: a) para as três religiões monoteístas (cristianismo, judaísmo e islamismo) Deus está presente no universo, dirigindo a tudo e a todos e não se afasta de ninguém, ao contrário, sempre manifesta sua ajuda; b) já a ciência moderna descreve o mundo natural como um mundo ordenado em que cada evento pode ter uma causa natural, levando a um conflito entre os dois pensamentos.

O autor, em seu livro, pretende mostrar a criação e sustentação do universo por Deus bem como buscar na ciência contemporânea onde a ação de Deus também é possível. Ignácio Silva propõe uma releitura da doutrina de Tomás de Aquino, filósofo cristão do século 13, no que se refere às causas primárias e secundárias versus sua relação com a contingência e o indeterminismo natural, no qual alguns acontecimentos não têm causas ou as têm de forma não-linear.

Releitura da Doutrina de Tomás de Aquino

O livro “Como Deus age no mundo” é composto por cinco capítulos nos quais o autor faz uma análise da ação divina frente as leis naturais, com base na análise da metafísica de Tomás de Aquino. O primeiro capítulo, “Procurando critérios”, traz questões como: a) Deus criou o universo e tudo que há nele, então ele poderia intervir na natureza quebrando as próprias leis que regem o universo? Nesse capítulo, o autor analisa os debates da tradição medieval islâmica, na qual os teólogos chamados kalam defendiam que Deus recria o universo a todo momento. Com isso, eles propuseram a teoria da “recriação constante”, preservando o papel essencial de Deus o que, para eles, era necessário. Dessa forma, passaram a diminuir a importância das atividades da natureza porque, se a natureza fosse capaz de agir por si mesma, não haveria espaço para a ação de Deus.

Nos séculos 16 e 17, muitos eram os debates em torno da questão, porém, com uma nova visão de que a natureza era regida por leis, mecânica e matemática, assim Deus passaria a ter poder sobre a criação. No século 20, a natureza passou a ser vista como determinística, ou seja, na qual Deus não podia agir sobre ela. Com o fim da era determinística da ciência, os teólogos puderam finalmente explicar a ação divina na natureza. Ignácio Silva encerra o primeiro capítulo estabelecendo critérios sobre a ação divina na ordem criada que são: a) a onipotência de Deus, a ação providencial de Deus no universo, a autonomia da natureza e o sucesso da razão humana.

Por sua vez, o segundo capítulo, intitulado “Ciência e providência nos dias atuais”, tem como objetivo a análise do debate contemporâneo no que diz respeito à providência divina e a contingência no mundo. De acordo com o autor, esse debate gira em torno da seguinte questão: se Deus de alguma forma interviesse na natureza ele estaria quebrando a ordem regida por leis do universo criado e nesse caso, segundo alguns dos autores citados no livro, haveria uma incoerência na natureza de Deus, pois esta ação estaria interferindo nos fundamentos das ciências naturais.

Além disso, Ignácio Silva destaca os debates ocorridos nas últimas décadas do século 20 entre teólogos e cientistas acerca da providência divina. Esse capítulo descreve ainda: a) as noções de ação divina classificadas como geral, que se referem às ações divinas que englobam a criação do universo, a ação de sustentar o universo seja por sua existência ou regularidade, além de permitir o funcionamento da mente e do cérebro; b) a ação divina especial difere da anterior pois refere-se às ações de Deus relacionadas aos milagres, respostas a orações de intercessão etc., capazes de alterar um resultado físico.

O autor, no terceiro capítulo, intitulado “Uma metafísica de contingência natural”, faz uma análise do debate contemporâneo sobre a providência divina e a contingência na natureza. Ignácio Silva defende o modelo de ação divina oferecido por Tomás de Aquino para quem as coisas naturais têm um princípio de movimento e que causam movimentos naturais, ou seja, a natureza está determinada a um tipo de ação. Nesse capítulo, o autor aborda ainda a contingência natural, analisando o pensamento de Tomás de Aquino, o qual apresenta um conjunto de noções que levam a compreender como as causas naturais se comportam de maneira autônoma.

A providência divina e sua relação com as leis naturais

mar e árvores
A natureza em Istambul / Arquivo Pessoal Silvana Coelho

“Uma metafísica da providência divina” é o tema do quarto capítulo do livro de Ignácio Silva, e aborda a compreensão do teólogo medieval Tomás de Aquino acerca do entendimento de Deus como atuante no universo. Nesse estudo, o autor segue sua análise e discorre sobre o modo tríplice por meio do qual Deus age na natureza, que são: o modo de criação, o modo de agir na natureza com seu poder e o modo de agir diretamente pela via dos milagres. De acordo com o autor, Aquino tem argumentos favoráveis à existência de algo que pode ser considerado Deus, uma vez que as coisas naturais são efeitos de Deus.

Antes de prosseguir com a análise do livro, gostaria de abrir um espaço para explicar que, para muitos pensadores da atualidade, Aquino (1225-1274) destacou-se em sua época tanto na teologia quanto na filosofia, principalmente porque baseou sua leitura e pensamento nos textos do filósofo grego Aristóteles no intuito de encontrar uma explicação quanto a existência do ser humano e sua relação com o divino.

Prosseguindo, Ignácio Silva explica ainda sobre a ação providencial de Deus – cuja essência é o ‘puro ser’ – no mundo criado. Segundo o autor, o poder de Deus é a causa do ser, sendo que o ato de ser é o seu efeito. Com isso, Silva afirma que Deus pode criar e que os seres humanos podem conhecer o fato da criação a partir do momento em que usam a razão natural.

Para o autor, a criação pode ser entendida de forma ativa em que demonstra a ação de Deus em relação à criatura, ou seja, isso mostra o poder que Deus tem de trazer algo à existência. Se a criação se desse de maneira passiva, denotaria a relação da criatura com o criador, ou seja, estabeleceria uma dependência desse criador. Por fim, o autor discorre acerca da maneira como Deus age na natureza após a criação depois de atuar por intermédio das causas secundárias, que são os milagres. Ele mostra ainda que Deus age de acordo com seu livre arbítrio e não de acordo com a necessidade e que Ele pode fazer coisas além ou fora da ordem natural das causas.

O quinto capítulo, intitulado “Tomás de Aquino nos dias atuais”, tem como objetivo trazer os princípios da metafísica referente à causalidade, entendida como determinista, e ação providencial de Deus ao debate contemporâneo. O autor discorre sobre o pensamento de Tomás de Aquino de que Deus é onipotente no sentido de que tem todos os poderes que a natureza tem. Mas isso não quer dizer que haja uma diminuição dos poderes da natureza.

Conclusão

Em sua conclusão, Ignácio Silva destaca que o pensamento de Tomás de Aquino no que se refere à ação providencial de Deus na natureza pode ser utilizado nos debates da atualidade, tendo em vista que Deus permanece ativo na contingência do universo. O livro “Como Deus age no mundo” é, certamente, um trabalho importante e que nos ajuda a entender tanto a ação providencial de Deus quanto os poderes da natureza em seguir seu próprio rumo.

Observamos neste livro que a ação do cuidado providencial de Deus pode ser encontrada em toda a Bíblia, como no Sermão do Monte quando Jesus garante aos ouvintes que estaria presente em meio as suas tribulações (Mt 6:25-34). Deus criou o universo e o controla e seu cuidado providencial é visto mesmo em meio às situações difíceis. Deus pode até criar acontecimentos trágicos para a humanidade, contudo, sua presença estará sempre por perto para confortar e consolar.

Por fim, resta-nos reconhecer nossa total dependência de Deus e esperar pelo seu agir em nosso favor, pois o controle de Deus, embora seja absoluto, permite que cada indivíduo seja responsável por seus atos, assim como o universo, que pode seguir seu próprio curso uma vez que é ordenado por este mesmo Deus.

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